Recentemente, as redes sociais foram palco de uma onda de bebês reborn, que mobilizou simpatizantes, haters e suas “mamães” —mulheres adultas que compartilharam os bonecos, gerando indignação, comentários e postagens desrespeitosas, mas também apoio.
Dia após dia, é possível notar o aumento de posturas raivosas em relação à prática, com comentários do tipo: “em vez de trabalhar, essas mulheres ficam de brincadeira”, “o mundo está de cabeça para baixo”, “tem que internar todas essas pessoas”.
Mas por que tanta resistência? Será que este é um hábito nocivo? As mães das bonecas possuem patologias?
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Para especialistas, olhar para bebê reborn como uma possibilidade de brincadeira não deve ser visto como um problema. Pelo contrário, o exercício do lúdico pode auxiliar no bem-estar, na redução do estresse e em outros problemas cotidianos.
— Do ponto de vista psicológico, o vínculo com o bebê reborn não significa a existência de uma patologia. Pelo contrário, a boneca pode ser útil no desenvolvimento e amadurecimento do lúdico, além de trabalhar a criatividade — explica Gisele Hedler, psicanalista e CEO da Faculdade de Saúde Avançada (FSA).
Segundo a profissional, o ato de brincar, por si só, não é um problema. Inclusive, deve ser preservado também na fase adulta, porque ajuda a manter o equilíbrio emocional e mental. No entanto, isso não significa dizer que não existam casos que mereçam atenção.
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Roberta França, psiquiatra, geriatra e professora da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAZ), explica que embora seja importante brincar, não podemos fingir não enxergar quando o hábito vira problema. Nesse sentido, a questão está quando se nota uma distorção dos parâmetros da realidade por parte da pessoa que possui a boneca.
— A questão é quando você transfere o lúdico para uma ideia de realidade, na qual você passa a acreditar que aquela boneca tem vida, história e faz parte do cotidiano. Perder o entendimento de que se trata de um objeto é o ponto no qual a brincadeira perde sua graça — diz Roberta.
Quando isso acontece, pode ser uma compensação emocional. Ou seja, a pessoa para de se relacionar com outras e passa priorizar o boneco. Assim, transmite suas questões emocionais para o objeto e cria uma distorção da realidade.
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Além dos problemas de saúde mental e emocional, isso também pode afetar a saúde financeira, porque a pessoa pode chegar a parar com seu cotidiano e até trabalho, para se dedicar ao reborn. No entanto, não é somente com as bonecas que vemos o fenômeno.
Questão de gênero?
Para Matheus Karounis, mestre em psicologia clínica e professor da PUC-RIO, o problema não tem relação com gênero, por isso “precisamos compreender a base da mentira em que acreditamos”. Um aspecto comum em quem perde a conexão com a realidade é a tentativa de forçar o outro a enxergar aquela outra realidade como ele:
— Um homem adulto que gosta de jogar futebol e cria um vínculo com a bola a ponto de forçar outro a praticar tal atividade com ele e impactar sua rotina por conta de crenças e transferências de sentimentos ligados ao hábito também necessita de atenção. A questão sempre vai ser o entendimento do saudável.
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Para Suzane Frutuoso, mestre em Ciências Sociais e doutora em Ciência Política pela PUC-SP, as mulheres são ensinadas desde criança a brincar de boneca. Na brincadeira, ela deve cuidar do neném, limpar a casa, ser responsável pela rotina da “família” e isso faz parte da criação do que significa ser mulher em nossa sociedade. Assim, ela entende que existam casos de mulheres que precisam de atenção por exagerarem na sua brincadeira com reborns, mas em tantos outros casos, quando a relação é saudável, lhe causa espanto o estranhamento da prática.
— As mulheres sempre tiveram bonecas e brincaram com elas. Ao mesmo tempo, costumamos perder o direito de brincar na fase adulta, enquanto os homens seguem com seu futebol e videogame. Não estou falando sobre lado A contra lado B, é para pensarmos mesmo. Se o que mais brincamos na vida foi de boneca, deveria ser aceitável fazermos o mesmo na fase adulta — reflete.
Suzane também chama atenção para a agressividade do diálogo. Para ela, a intolerância com a nova brincadeira tem relação direta com a sociedade patriarcal. Como há homens que demonstram comportamentos não saudáveis em seus momentos de lazer, também há mulheres que demonstrarão, mas não é aceitável, para a cientista social, “reduzir o olhar para um lugar tão restrito e grosseiro”.
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Aspecto terapêutico
— As pessoas são muito complexas. Por vezes, quem precisa de atenção está vindo de um luto recente, infância negligenciada, é uma mãe ferida, entre outras possibilidades. Todos esses são casos em que o bebê reborn pode ser ferramenta terapêutica — revela Gisele Hedler.
A psicanalista sugere um olhar mais empático.
— Cada caso é um caso. Tenho uma paciente com Alzheimer, por exemplo, que após adquirir uma boneca, teve melhora significativa em seu processo. Com ela, passou a interagir melhor com o outro, aceitou a presença da cuidadora e se mostra mais corajosa — compartilha Roberta França.
Vale destacar que as bonecas não se restringem a uma determinada faixa etária. Hoje, com aumento da população idosa e das doenças neurodegenerativas, o bebê reborn tornou-se um aliado para os pacientes.
A ideia da boneca como ferramenta terapêutica para pacientes com Alzheimer é conhecida pela cegonha Janaina Affonso, 47 anos, que fabrica bonecas na Vila Valqueire, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Ela conta que começou a estudar em 2019, com auxílio financeiro do pai. Dois anos depois, ele foi diagnosticado com Alzheimer. Notou uma rápida evolução no quadro do pai, até que teve a ideia de presenteá-lo com uma boneca.
— Muitas vezes, meu pai passava a impressão de estar distante, mas quando pegava na sua boneca (chamada José) se fazia presente, nem que fosse por minutos — compartilha Janaina.
Em 2022, Adalício faleceu de Covid-19, mas com a família tendo a certeza de que se não fosse pela boneca do idoso, a trajetória poderia ter sido mais curta.
*estagiário sob supervisão de Constança Tatsch