Os termos negociados por Estados Unidos e China para reduzir tarifas de importação um contra o outro neste fim de semana são apenas uma “primeira valsa” de muitas outra rodadas de negociação, avalia o pesquisador associado do FGV/Ibre e sócio da BRCG Consultoria, Lívio Ribeiro, para quem os avanços sinalizam para uma mudança no perfil da representação americana.
“Não tem nenhum lunático sentado à mesa e isso parece ser um grande avanço em relação ao debate que a gente tinha no último mês”, disse em entrevista ao InfoMoney. A avaliação é de que negociadores mais radicais da gestão Trump como Howard Lutnick, Peter Navarro e Stephen Mira, dão espaço para o secretário do Tesouro americano, Scott Bessent, nas mesas.
Uma série de reuniões neste fim de semana levaram a uma redução nas tarifas de importação impostas por um país contra o outro por um prazo de 90 dias. Agora, produtos chineses são expostos a uma alíquota total de 30% ao ingressar nos Estados Unidos, e produtos americanos pagam 10% sobre o seu valor para entrar na China.
“Houve um avanço relativamente rápido em termos de tempo decorrido de sentar à mesa formalmente para que se tenha um comunicado”, diz. “É um sinal de que, na verdade, essas tratativas possivelmente já tinham começado, ou de que a dor é tão grande que ninguém acha isso razoável, então é muito mais fácil convergir.”
A escalada na guerra comercial que ganhou força após o “Dia da Libertação” promovido por Donald Trump em abril, que levou as tarifas de importação dos EUA contra a China a 245%. Os valores basicamente travaram qualquer possibilidade de relação comercial entre os países.
“Esse avanço ocorreu e ele é importante, mas ele não é tão sólido. É a primeira valsa, vamos chamar desse jeito”, aponta Ribeiro. Para o pesquisador, ainda haverá muitas rodadas de interação entre os países, que caminham para algo similar ao Acordo Fase 1, estabelecido em 2020, pouco antes do lockdown promovido pela pandemia de Covid-19.
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“Lembrando, o Acordo Fase 1, independente da questão da pandemia, tinha metas absurdamente arrojadas, principalmente em energia e serviços, que não seriam cumpridas em praticamente nenhum cenário”, explica Ribeiro.
Leia a entrevista completa abaixo.
InfoMoney: Vimos reações positivas dos mercados globais, ao menos até o início da tarde de segunda-feira, sobre o acordo entre China e Estados Unidos. Qual é a sua avaliação sobre as tarifas definidas pelos dois países no acordo firmado em Genebra?
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Lívio Ribeiro: É o primeiro passo de um processo. As pessoas talvez estejam colocando peso demais no acordo que foi feito, sem levar em conta, primeiro que esse acordo é temporário, vale por 90 dias; segundo que ele não abarca todas as categorias de produtos que são fruto de comércio bilateral.
Até quando falamos dos 10% de China contra Estados Unidos e de 30% de Estados Unidos contra China, na verdade temos os mesmos 10% dentro de tarifas recíprocas, igualando a taxação chinesa e americana a todas as outras. Lembra que a gente tem a tarifa recíproca, ela está com um waiver até o início de julho de 10% para todo mundo, quando vão negociar caso a caso.
E têm os 20% originais que havia no caso dos Estados Unidos contra a China que continuaram sendo mantidos. Isso não abarca aço, não abarca alumínio, não abarca farmacêutico, não abarca automotivo.
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Quando você fala de tarifa de país A com país B, a gente tem que tomar muito cuidado aqui de qual tarifa estamos falando. Falamos hoje, basicamente, da recíproca em 10% dos dois lados e os 20% originais impostos dos Estados Unidos contra a China continuam válidos no caso americano.
Há duas coisas que são surpreendentes. A primeira é que houve um avanço relativamente rápido em termos de tempo decorrido de sentar à mesa formalmente para que se tenha um comunicado e uma decisão em conjunto. O que é um sinal de que, na verdade, essas tratativas possivelmente já tinham começado, ou que a dor é tão grande que ninguém acha isso razoável, então é muito mais fácil convergir, pelo menos temporariamente, quando está em um momento em que é absolutamente escalafobético.
E era exatamente esse cenário: tarifas de 245% somadas dos Estados Unidos contra a China, tarifas de 125%, no caso chinês contra os Estados Unidos, falando abertamente que não subiriam mais porque era irrelevante, porque o comércio já era inviável nesses patamares, e aí a China começa a tomar outras medidas não tarifárias, restrição de exportação de terras raras, lista negra de empresas americanas e investimentos chinês.
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Tem muita coisa para ser discutida. Então, vamos tomar algum cuidado de não concentrar toda a discussão nesse avanço. Esse avanço ocorreu e ele é importante, mas ele não é tão sólido. É a primeira valsa, vamos chamar desse jeito. Haverá muitas rodadas de interação entre os dois países para chegar em um acordo que possivelmente vai lembrar, em algum nível, o Acordo Fase 1, lá de 2020, do qual todo mundo esqueceu, porque foi feito no final de janeiro e 45 dias depois o mundo estava em lockdown. Temos que observar nos próximos meses.
IM: Você acha que o acordo, nos termos que descreveu, sinalizam para um sucesso da estratégia do Trump de impor tarifas para posteriormente negociar? No fim das contas há um efeito ou estamos voltando para patamares similares aos que existiam antes?
LR: Deixa a tarifa de 20% chinesa de fora, por enquanto. Quando se coloca a tarifa recíproca contra todo mundo, em 10%, sinceramente, não mudou basicamente nada. E esse custo, possivelmente, vai ser inteiro repassado para o consumidor americano. Ele não muda a estrutura de comércio.
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Não são 10% de tarifa que vão resolver isso. No caso dos 20% contra a China, que com a tarifa recíproca soma 30%, ainda tem um cenário em que a pressão americana é um pouco mais forte. No entanto, os Estados Unidos não podem prescindir de diversos produtos, diversas cadeias que são totalmente condensadas em produtos chineses. Não necessariamente na ponta, mas na estrutura de insumos.
E já tinham aberto exceções, por exemplo, na parte de eletrônicos, na parte de computadores, na parte de telefonia. Eu não teria a visão de que a estratégia deu certo. Acho que é o contrário, a estratégia deu bem errado.
Ela teria dado certo se a China não tivesse retaliado. E aqui eu acho que houve, de fato, um erro de avaliação. O governo americano entendeu que ele infligiria tanta dor no crescimento chinês de curto prazo que eles não teriam o que fazer que não fosse correr rapidamente para fazer um acordo. E, genuinamente, eu não acredito que a administração americana esperava que a China fosse retaliar.
As pessoas não perceberam que a China está se preparando para esse tipo de choque há pelo menos uns seis, oito meses. Então, a China não entra na guerra comercial nessa contraposição estratégica em relação aos Estados Unidos da forma como ela entrou na Primeira Guerra Comercial.
Hoje a China é uma economia muito mais sólida, que quer projetar poder, que tem a aspiração de ter um lugar, um assento nas discussões do mundo. Então, não vai ser rápido, não vai ser simples. É exatamente o que a gente viu.
A administração americana e a chinesa dão passos para trás porque, do jeito que a coisa estava, era ruim para todo mundo. Talvez a grande vantagem é que, principalmente do lado americano, os negociadores mais radicais, [Howard] Lutnick [secretário de comércio dos EUA], [Peter] Navarro [assessor de Trump], [Stephen] Miran [também assessor], claramente são escanteados por [Scott] Bessent [secretário do Tesouro dos EUA]. Bessent quem está lá fazendo o acordo.
Tem um tom para mim de que os adultos entraram na sala e agora vão botar a bola no chão e fazer negócios, o que é bom. A gente sai da loucura e vem para uma discussão que é dura, discutir se faz sentido, se não faz, mas o fato é que não tem nenhum lunático sentado na mesa e isso parece ser um grande avanço em relação ao debate que a gente tinha no último mês. Quem faz conta e quem tem bom senso está tocando as negociações, e isso é bom de ambos os lados.
IM: Quais são as estratégias e o que cada um dos dois lados tem para colocar na mesa de negociação e seguir tentando arrefecer essa guerra comercial que vimos nos últimos meses?
LR: Quando se fala do comércio bilateral entre os dois países, estamos contabilizando somente um produto final ou os produtos que são enviados do país A para o país B. E acabamos esquecendo que as cadeias globais de valor hoje perpassam por vários países ao mesmo tempo.
Um produto exportado de um porto chinês para um porto americano tem componentes chineses, alemães, japoneses, coreanos, ingleses. Tem uma estrutura, obviamente, dos produtos de valor adicionado mais elevado. Mas você tem uma estrutura de encadeamento produtivo que é multinacional.
Ela é transnacional, na verdade. E talvez esse tenha sido um ponto que ainda não fica tão claro quando a gente faz uma discussão de onde os Estados Unidos têm um déficit A com o país B. Na verdade, está tudo muito misturado. As cadeias globais de valor foram organizadas nas últimas décadas de uma forma de maximizar a eficiência.
Isso, às vezes, pode levar a estruturas produtivas que são transnacionais, que pareceriam em princípio meio insanas: ter pedaços, uma linha de produção espalhada por inúmeros países em inúmeros continentes para chegar em um produto final. Não tem dois lados, são múltiplos lados, e todas as partes estão envolvidas nesse grande encadeamento. Fica cada vez mais claro que as ideias originais americanas de fazer on-shoring, de trazer empregos, não funciona bem assim.
É absolutamente improvável que mesmo que você traga as indústrias para dentro dos Estados Unidos, coisa que não é imediata, isso se reverta na criação de empregos industriais. Até porque o trabalhador médio americano possivelmente não vai querer trabalhar numa indústria de trabalho intensivo, de valor adicionado mais baixo, encostando a barriga na linha de produção. Coisa que acontece no Sudeste Asiático, cada vez menos na China, mas no Vietnã, Laos, Cambodja.
Então, o que temos que entender aqui, na verdade, é, primeiro, menos paixão nesse debate todo. Existe um argumento que os Estados Unidos se incomodam com o tamanho do déficit que ele tem contra a China. Eu particularmente não vejo um problema, contanto que esse déficit seja bem financiado, e ele é. Mas o fato é que partimos para uma discussão agora que possivelmente vai lembrar o Acordo Fase 1, que são metas de aumento de compras chinesas dos Estados Unidos, em determinados segmentos.
Lembrando, o Acordo Fase 1, independente da questão da pandemia, tinha metas absurdamente arrojadas, principalmente em energia e serviços, que não seriam cumpridas em praticamente nenhum cenário. Então temos que ver agora se vamos andar nessa direção. Acho que a gente vai andar nessa direção: quais são as metas que são estabelecidas e se elas fazem sentido para ambos os lados. Haverá muita batalha de narrativa.
Hoje, os jornais chineses dizem que Xi Jinping ganhou, os jornais americanos, pelo menos os americanos mais pró-governo, dizem que Trump ganhou. E ambos os lados vão ter boas razões para dizer que ganharam. No fim do dia, eu acho que todos nós ganhamos, porque tirou os cenários mais polares, pelo menos no curto prazo, e voltou a fazer uma coisa que não estava sendo feita, que era estabelecer canais de diálogo.
A coisa mais importante do comércio, saindo da economia, é que o comércio exige que as partes sentem para negociar. E quando se negocia, negocia tudo, não somente a troca de A com B. Quando se conversa, tem menos risco de tomar caminhos que vão incomodar a contraparte, e se incomoda menos a contraparte, tem menos risco, de maneira geral, de ter evoluções de cenários que não sejam adequadas no sentido de contraposição geopolítica e, eventualmente, guerra.
Os países precisam ter um fórum de debate. Quaisquer que sejam esses fóruns. E quanto mais você troca, mais chances você tem de fazê-lo. E isso é bom. É bom para o mundo, é bom para os Estados Unidos, é bom para a China.
IM: Toda essa disputa comercial teve um efeito, seja um das projeções macroeconômicas para desaceleração do crescimento global, sejam seus efeitos na cadeia de alguma maneira, nas cadeias de produção. Que parte desse efeito já foi dado e nós vamos colher eles nesse mês, nos próximos meses? E que parte agora pode ser controlada, pelo menos com o início dessas conversas?
LR: O ponto central é que teve muita gente que pulou no call de recessão. Eu sempre achei exagerado. Existe sim desaceleração, existe aumento de incertezas, existe desconfiança. Daí a dizer que pula de uma economia, no caso americano, que está crescendo muito forte para uma recessão, é um pulo enorme que não parecia fazer sentido.
Mesmo o resultado do PIB do primeiro trimestre, que é uma contração na margem anualizada, vem em resultado de uma grande reformatação de comércio anterior às tarifas. A importação é antecipada, então tem um efeito sobre produção agregada nos Estados Unidos, que significa que a produção fica menor, muito menor do que a capacidade de absorção, e aí acaba gerando um efeito negativo de PIB. Mas o crescimento, o PIB, por exemplo, do consumo privado, é mais forte do que o mercado mais novo.
O mercado de trabalho continua forte, a renda continua elevada. Mesmo os indicadores de alta frequência de vendas no varejo, produção industrial, têm um desempenho bom. Não é incrível, mas é bom.
Vamos separar direção e intensidade. O choque tem reverberações negativas nas economias americana, chinesa e mundial. No caso americano, inclusive, tem outros choques. Por exemplo, todas as pendências comerciais que você está criando contra México e Canadá também têm um impacto na estrutura produtiva americana.
O que medidas como as que aconteceram essa madrugada (de domingo para segunda-feira) colocam na mesa? Primeiro, é a possibilidade de um acordo que não seja tão destrutivo no fim do dia.
Dois: descomprime risco. E interessante, ela é e está sendo corretamente interpretada como uma reversão da agenda global que você estava vendo na administração Trump em termos econômicos, que era a questão comercial, o enfraquecimento do dólar, toda uma discussão do que fazer com as treasuries, de renegociá-las ou não. Hoje, o efeito está sendo o fortalecimento do dólar, uma descompressão de risco, porque tem uma descompressão de incerteza.
Os Estados Unidos têm, em muitos aspectos, operado como uma economia emergente. Quando o risco sobe, em geral, a moeda americana fortalece, porque você migra para o ativo de maior proteção. Só que o que tem acontecido nesse ambiente é que ele se tornou um ativo arriscado, então as pessoas estão migrando para fora dele. Descompressão de risco faz a moeda americana fortalecer, pelo menos pontualmente. Então, você mexe em todos os preços de ativos e reembaralha o cenário. A mensagem é, a gente estava andando em uma direção, na verdade não estava andando em direção nenhuma, a gente estava batendo cabeça.
IM: Para você, a sinalização é positiva para todo o mundo. No Brasil havia algum receio de que com o aumento das tarifas de importação sobre produtos chineses, parte do excedente de produção poderia ir em direção ao Brasil, o que causaria algum tipo de concorrência para determinados setores. Essa devia ser a principal preocupação até o momento.
LR: Tem um outro ponto, porque, note, se isso traz um impacto, se isso trouxesse um impacto negativo sobre a indústria traria um impacto positivo sobre a inflação, certo? Então, acaba tendo esses dois lados da moeda e muito da visão dos mais otimistas com política monetária no Brasil advém dessa potencial enxurrada de produtos chineses que levaria a inflação de tradables no Brasil para baixo ou de uma recessão global que aí destruiria o crescimento econômico no mundo inteiro e aqui pegaria de rebarba e, portanto, ajudaria no processo de desinflação.
Se você pensa desse jeito, na verdade, o que aconteceu ontem para aqueles que defendem o canal externo como um vetor desinflacionário na economia que permitirá juros mais baixos o que aconteceu nessa madrugada é ruim. Acaba sendo na direção contrária. Então, depende muito de qual é o prisma que está sendo utilizado para avaliar a situação. Eu nunca fui partidário da história de que haveria uma enxurrada de produtos chineses porque os nossos lobbies são muito organizados e, possivelmente, isso não ocorreria.
Agora, de maneira geral caso esse movimento seja mantido é importante fazermos essa distinção: ele é uma descompressão de risco, o que é sempre bom. O problema é está contando com um problema global, com uma questão global para ajudar no seu processo de desinflação porque aí fica mais difícil. Eu tenho um pouco de dúvida de como isso está sendo lido.